sexta-feira, 15 de maio de 2009

"Tateio, tateias, tateia. Ou tateamos, eu e tu, enquanto ele se movimenta sem dificuldade entre as coisas? Sei pouco de ti, apenas suspeito da tua existência desde quando descobri que nem eu nem ele éramos os donos de certas palavras. Como se tivesse percebido um espaço em branco entre ele e eu e assim - por exclusão, por intuição, por invenção - te adivinhasse dono desse espaço entre a luz dele e o escuro de mim. Tateias, também? De ti, quase não sei. Mas equilibras o que entre ele e eu é pura sombra.
Estou me afastando, estou indo embora e preciso que me entendas antes que eu vá, crucificado na parte externa do vagão de um trem em alta velocidade. Tento devagar, mais claro: ele não se afasta. Dia após dia, eu noto, torna-se mais simpático, mais eficiente, mais solícito - para utilizar palavras que não sei bem o que significam, mas imagino sempre alguém sorrindo muito, fazendo reverências, curvando constantemente a cabeça, como uma gueixa. Gueixa, ele, a grande puta, com seu silêncio de passinhos miúdos e pés amarrados. Preciso tentar certa ordem no que digo, e dizer de novo, vê se me entendes: ele não se afasta, mas é dentro dele que eu me afasto.
Dentro dele, eu espio o de fora de nós. E não me atrevo.
O que vejo nos outros, com seus grandes poros abertos, são caras demasiado vivas. As caras de fora se debruçam sobre ele e eu tenho medo, eu nunca poderia olhar de frente para todos aqueles olhos boiando na superfície branco-gelatinosa, raiada de veiazinhas vermelhas, e eu sinto nojo. Não dos olhos, mas do interior das caras que transparece nas veiazinhas. Também não são as bocas, mas os gosmosos vermelhuscos de dentro, quando se abrem demasiado. Os inúmeros pontinhos pretos dos narizes, às vezes subindo para a testa, entre as sobrancelhas, o interior rosado dos narizes, as goelas abertas com suas umidades móveis ao fundo, cheias de pequenos espasmos, miúdas convulsões. Quando as grandes caras vivas se debruçam, sinto que transpareço nas veiazinhas dos olhos deles, e tenho medo que apenas um piscar me lance para fora, entre as coisas pontudas.
E quando ele abre sua boca movediça para escarrar palavras, gotas de saliva e mau hálito, tenho medo de ele ser essa palavra, essa gota, esse hálito. O mesmo de quando esfrega as palmas das mãos e solta no ar os feixes de energia, como se fosse uma vibração, não um ser.
Sempre posso parar, olhar além da janela. Mas do interior do trem, nunca é fixa a paisagem.

..
E quase não temos tempo."

Morangos Mofados, Caio Fernando Abreu.

5 comentários:

BelaCavalcanti disse...

querida viveca, adoro seus textos. e adoro, em particular, Caio Fernando Abreu. Mas essa cronica (tão cheia de metáforas)me fez pensar que revela muito mais o seu momento do que uma "mensagem" qualquer.Posso estar errada.
beijo,
gabriela

BelaCavalcanti disse...

ADORO. E tenho a impressao de que vc é uma pessoa beemm especial. dessas que valem a pena conhecer. Torço por vc - vida é curta e todo nosso esforço deve ser no sentido de fazer o melhor, descomplicá-la.
bj e fique com Deus.

Raone disse...

Como se não bastasse a vida ser curta, ela passa rápido!
Digo o mesmo que Bela: Fique com Deus!

Anônimo disse...

ADORO gente careta rsrsrs - homem então, é o melhor tipo! vai por mim;)

Unknown disse...

Conheco Caio desde a minha adolescencia - ou seja se passam dez anos que entre um baseado e outro e os meus amigos ostentavamos a vaidade de ter mais um genio da literatura e gay!
Tenho o livro Morangos mofados!!

Lindo,
Parabens pelo post,
x T