quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Lisergia

Por Moca e Viveca Santana
Não, não foi, lógico que não, de maneira alguma, porém, de alguma forma, meio que ectoplasmática, disforme e espalhada pelo chão desse quarto cheirando ao nosso suor, talvez, eu te digo, talvez, se por um momento eu moldasse tempo e espaço como argila, massa de modelar transformada em código binário enquanto eu, tonto de tamanha embriaguez puramente lúcida, teclo frenético anárquico organizadamente dentro da minha própria bagunça enquanto organizo o que não se pode conter entre os dedos.
Te respondo perguntando e respondendo dentro de um mesmo questionamento se é que há algum sentido em não haver sentido nada além de frio (e um pouco de sede) quando apaguei com borracha um caminho/estrada que já não havia sido desenhado por mim mas que mesmo eu ou você acreditando não ter fim, acabaria como parte de um mesmo círculo, dito infinito enquadrado num espaço em preto e branco colorido.
Bebo chá de boldo com café após ter acordado lá, mas já estou aqui e as distâncias não me importam mais, poucas coisas me importam quando não me importo mais com nada, a não ser organizar essa bagunça (já te falei de como o quarto ficou) e tentar abrir mais uma janela com vista a uma parede de tijolos. tijolos bonitos, eu diria, sobrepostos como o silêncio, fingindo resistência e segurança enquanto imóveis como estão nem se dão conta da estupidez da própria segurança enquanto tijolos.
Estes mesmos tijolos viraram nossa cela segura, fizeram parte dos dias que tuas mãos tocaram neles também molhados de nosso mesmo suor e cheios da vida que a gente queria deixar só ali dentro e não deixar sair como um suspiro.
Se eu pudesse, nesse meu dia de olhos vidrados e de lisergia, de falta de coerência natural aos humanos e sem instantes contantes, te seguraria ali dentro, presa comigo, absorvendo o gosto da nossa boca até nossos lábios cansarem de tanto sugarem um ao outro.
Sugaria até a última gota da tua saliva, te apertaria com violência, mesmo com medo de me sentir agressivo aos teus olhos livres.
A vida fora da nossa bagunça pra mim não tinha diferença, continuo sem me importar com os rostos dos vivos sem vida, lá fora. Fora de nós dois. Fora de nossa bagunça insone.
E os teus olhos livres movimentavam-se ali, perdidos na bagunça, nos tijolos, na caixa que eu teimava em te prender, no meu corpo.
Eu não queria mais janelas, não queria mais tijolos, não queria as lembranças.
Bastava-me te prender dentro de mim, tatuar teu corpo no meu corpo, te transformar numa célula ou parte da minha pele, calejada de nossos amores noturnos.
Segurança pra mim chama-se agora apego.

*Esse texto foi escrito com um grande amigo, coisa que nunca havia conseguido fazer antes.
Acho que pra se conseguir isso, haja parceria, companheirismo e de alguma forma amizade, não é Moca?

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Sereníssima

Legião Urbana
Sou um animal sentimental
Me apego facilmente ao que desperta meu desejo
Tente me obrigar a fazer o que não quero
E você vai logo ver o que acontece.
Acho que entendo o que você quis me dizer
Mas existem outras coisas. Consegui meu equilíbrio cortejando a insanidade,
Tudo está perdido mas existem possibilidades. .
..
Não estou mais interessado no que sinto
Não acredito em nada além do que duvido
Você espera respostas que eu não tenho mas
Não vou brigar por causa disso
..

* Ouvi essa música hoje, foi a que me fez realmente gostar do Legião Urbana (exatamente na época que comecei a ensaiar uns escritos), talvez porque desde a adolescência eu acreditei que a letra levasse traços da minha personalidade.
Já foi profile de orkut falecido, já foi trecho em caderninho que anda perdido na minha bolsa enorme e segue sempre comigo por aí quando penso em melhorar ou mudar em alguma coisa.
Aproveitando a falta de mensagens de apelo otimista:
Desejo um ano novo mais autêntico e verdadeiro aos passantes, sem a obviedade que desejamos e nos acostumamos.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Síncope

Por Viveca Santana

O avô dela estava morrendo e ela só queria dar o coração dela pra ele. De vez.
Daria o coração que não servia mais nela, para alguém que passasse na rua, para o porteiro do prédio, para uma amiga, para a vendedora da loja de livros, qualquer um.
Ele não batia mais faz tempo, doía no peito, não deixava ela mais respirar. Não queria mais ela.
O ar entrava difícil, saía difícil, doía nas sístoles e diástoles teimosas.
Tossía compulsivamente quando pensava que ele não pudesse suportar um arfar mais profundo.
Ela tentou pegar ele, quebrar em pedacinhos, mas pensou em doar pra alguém que quisesse, que precisasse mais que ela, já que machucavam as feridas abertas, latejando.
Mas e se ele não servia mais ali naquele espaço vazio?
Não adiantava bater no peito como antes, tentar ouví-lo com o estetoscópio; o médico não escutaria mais ele e ela tinha vergonha disso.
Agora estava coberto de manchas roxas por todo lado, calejado, fechado pro mundo.
Tinha pena até de quem pegasse ele pra si, talvez nem batesse mais, não sentisse o calor dos abraços, a graça de um beijo, a diferença de um sorriso.
O tic tac dele era coisa da cabeça dela, acostumada com as batidas antigas, tornaram-se chatas até. Enjoavam ela.
Mas como foi que ele parou de bater? Não cuidou dele direito? Não deu o suspiro que deveria dar nas horas óbvias? Foram aquelas punhaladas que recebeu no peito?
Será que valia a pena trocar por outro ou viver a vida oca que nem árvore sem vida?


Para ler ouvindo :
http://br.youtube.com/watch?v=N-mqhkuOF7s

sábado, 20 de dezembro de 2008

"Paga aí que eu tô doidão"

Radiohead escolhe Kraftwerk para abrir shows no Brasil

da Folha Online

Os alemães do Kraftwerk vão abrir os shows do Radiohead no Brasil, segundo o site oficial do grupo inglês.
A banda pioneira de música eletrônica é descrita no site do Radiohead como "muito especiais".
O Kraftwerk esteve no Brasil em 1998, no antigo Free Jazz Festival, e em 2004, no Tim Festival, que o sucedeu.
As bandas vão se apresentar no dia 20 de março, na Praça da Apoteose, no Rio de janeiro, e dia 22 de março, na Chácara do Jockey, em São Paulo.

Esta será a primeira vez que o Radiohead se apresenta no Brasil no festival Just a Fest.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Tornar-me-ei pano de chão

Por Viveca Santana

Coisa bonita o dom da embromação, do logro, do viés.
Sempre penso nisso quando vejo algumas coisas na tv que me indignam.
Como alguém consegue criar um desejo em alguém ou fazer alguém acreditar em algo que simplesmente se tornaria uma piada, se fosse inventada por qualquer um e contada numa mesa de bar.
Pensei em não comentar, simplesmente pelo fato de naturalmente ser agressiva nas minhas opiniões pessoais e porque acreditei que haveria um lapso, um rompante de coerência da parte de alguém, algum engravatado (o cara que decide) que talvez voltaria atrás.
Ele acordaria de manhã, com seu roupão de seda e lendo o jornal matinal, perceberia a idiotice que é o tal conceito de mistura nonsense do Festival de Verão.
A idéia é louvável, mas não sei, sempre me remete uma cena do Rock in Rio, Carlinhos Brown ótimo, cheio de boas intenções recebendo latadas grotescas de fãs do metal.
Sim, essas coisas não acontecem na Bahia, somos seres tolerantes, simpáticos no geral. A mensagem seria perfeita para uma cena de Nobel da Paz, se houvesse uma medida de tino musical.
Quase desenvolvo um ataque epiléptico ao ver Alanis Morissette, ícone pop de uns anos atrás, de musicalidade bem diferente das opções do dia, antecipando um show de Psirico.
Leia-se: não há nada de preconceituoso aqui, venham os algozes (me transformem num pano de chão se quiserem), amantes das rimas ricas do pagode, respeito a inclinação, admitindo não ouvir/gostar/admirar. Porém, aceitar uma falta de coerência musical e culpar a pobre mistura?
Públicos diferentes, vá lá, que se goste dos dois, isso é viável diante de tantas coisas estranhas e folclóricas que se vê aqui na Bahia (e se torna até agradável, bonito, pitoresco e é a cor e a graça do baiano).
A questão é: desde quando mistura é cegueira? Dá pra misturar sem atestar o desinteresse musical, não dá não?
De boas intenções o inferno está cheio.

Pobre moça educada: http://br.youtube.com/watch?v=b1WJlxjxAZE

domingo, 14 de dezembro de 2008

- Sabe a garota do copo d'água?
- Sei.
- Se parece distante, talvez seja porque está pensando em alguém.
- Em alguém do quadro?
- Não, um garoto com quem cruzou em algum lugar, e sentiu que eram parecidos.
- Em outros termos, prefere imaginar uma relação com alguém ausente, que criar laços com os que estão presentes.
- Ao contrário, talvez tente arrumar a bagunça da vida dos outros.
- E ela? E a bagunça na vida dela? Quem vai pôr ordem?


(Le fabuleux destin d'Amélie Poulain)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Prazer que dói pero eleva a alma.

Por Viveca Santana



Existem coisas pequenas que causam um prazer imenso. Existem as que são grandes, que de tão grandes sufocam a gente e não dá nem pra perceber como foram difíceis de conseguir ou a importância delas. E existem os prazeres amenos ou de poucas horas que levam lembranças pro resto da vida.





Nos dias 20 e 22/03 o Radiohead, que há tempos tenta vir para o Brasil fazer um show, vai estar em terras Tupiniquins cantando para alguns que não conhecem (e os amantes incansáveis) a sua fina obra: músicas depressivas ou a resumidas à baladinha "Fake plastic trees" (a tal trilha da propaganda do Carlinhos, rapazinho que eu pessoalmente nem me lembrava mais) para os ouvintes não-ouvintes.
Sim, prazer ilegível, para alguns.
Demorei anos para gostar realmente da banda, refinar o ouvido para as distorsões e amei muito mais quando comecei a conhecer as letras e a poesia sensível e triste de Thom Yorke (poesia que de tão verborrágica, se torna grotesca e depressiva para os humanos normais).
Uma amiga tentou me empurrar o cd Kid A (trilhas que não aconselho para quem não conhece bem a banda, tristes, estranhas, rápidas demais, para os tímpanos acostumados com a normalidade vil do dia-a-dia. A aversão pode vir tão rápido e o preconceito se assume na hora como um calafrio, na minha opinião sincera de cobaia).
Numa fase de tranqüilidade, Ok Computer veio de presente e não saiu da minha lista de audíveis-amáveis-passíveis de alienação. Fora a beleza das músicas, não posso discutir a maneira arrojada na criação do clipes, para mim sempre surpreendentes porque viajam na simplicidade dos sentimentos naturais (como poderia imaginar "No surprises" senão numa situação de sufocamento, de falta de ar, de inconstância?).
É a história do clipe que parece que foi criado antes da música, ou da música que já é uma imagem fixada na mente, empurrada goela abaixo com toda a raiva do mundo:




Indico aos que não conhecem ou são deprovidos de preconceito ao caos (os citados como ouvintes não-ouvintes), ouvir "Let down", "No Surprises","Idioteque", "High and dry" e "All I Need" (essa última do cd novo, que tem um clipe ótimo com um cunho social).
In rainbows é um cd bom na totalidade, mais alegre que os anteriores, mais gostoso de ouvir no carro, na praia ou quando alguma coisa te incomoda. E melhor: elevou o prazer de ouvir música pagando o que você podia acreditar que valia.

Sei que vão existir críticas ao texto, à passionalidade da coisa: o Radiohead é uma banda daquelas que você ama ou odeia.
Eu estou amando a possibilidade de vê-los em SP, numa noite provavelmente fria de domingo.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Radiohead confirma shows no Brasil em 2009

Fonte: Folha de S.Paulo

O Radiohead finalmente acertou shows no Brasil. A cultuada banda inglesa se apresentará no Rio de Janeiro, em 20 de março de 2009, e em São Paulo, em 22 de março.

Os ingleses do Radiohead, que farão shows no Rio de Janeiro e São Paulo em março
No Rio, o show acontecerá na praça Apoteose; em São Paulo, na Chácara do Jockey --terreno na zona sul de São Paulo onde, ocorreu o festival Claro Que É Rock em 2005. Nas cidades, os ingressos terão preço único: R$ 200 (estudantes pagam meia).
Os ingressos começam a ser vendidos à 0h de 5 de dezembro, pela internet. A partir das 9h de 5/12, haverá venda nas bilheterias do estádio do Pacaembu (SP) e Maracanãnzinho (RJ).
A capacidade de público em cada uma das praças será de cerca de 30 mil pessoas. Os shows do Radiohead estão sendo organizados no Brasil pela produtora Plan Music. Eles acontecerão dentro de um festival batizado de Just a Fest, que terá quatro bandas (incluindo o Radiohead), sendo duas nacionais. Os outros artistas que tocarão no evento ainda não foram definidos.
"Não foi a primeira negociação que tivemos com o Radiohead", diz Luiz Oscar Niemeyer, da Plan Music. "Houve uma no ano passado, que acabou não indo para a frente. Agora finalmente as coisas encaixaram. De quatro meses para cá, as conversas andaram".
Segundo Niemeyer, o Radiohead trará ao Brasil a produção completa de show, com cenário e iluminação idênticos aos utilizados nas apresentações norte-americanas.
A banda
Há pelo menos cinco anos circulam rumores de uma possível vinda do Radiohead ao Brasil. É, possivelmente, a banda roqueira mais aguardada pelos fãs brasileiros.
Dono de letras que vão da crítica social a paisagens abstratas, o vocalista Thom Yorke é o principal personagem do Radiohead. O principal coadjuvante é o guitarrista Jonny Greenwood, autor também de trilhas para o cinema. A banda tem ainda Ed O'Brien (guitarra), Colin Greenwood (baixo) e Phil Selway (bateria).
O grupo tornou-se uma das principais notícias do mundo pop no final do ano passado com o lançamento de "In Rainbows", o sétimo disco.
Numa iniciativa inédita para uma banda do porte de Radiohead (mais de 30 milhões de discos vendidos), o quinteto deixou para os fãs decidirem quanto deveriam pagar pelo álbum. "In Rainbows" foi lançado primeiro por download e, em seguida, em formato físico de CD. Foi recebido com elogios pela crítica.
Além de Brasil, a turnê sul-americana do Radiohead passa por Chile e Argentina.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Liberdade

Marcelo Camelo

Perceber aquilo que se tem de bom no viver é um dom
Daqui não
Eu vivo a vida na ilusão
Entre o chão e os ares
Vou sonhando em outros ares, vou
Fingindo ser o que eu já sou
Fingindo ser o que já sou
Mesmo sem me libertar eu vou
É Deus, parece que vai ser nós dois até o final
Eu vou ver o jogo se realizar de um lugar seguro
De que vale ser aqui
De que vale ser aqui
Onde a vida é de sonhar?
Liberdade

domingo, 9 de novembro de 2008

Vaga-lume

Por Viveca Santana

Me descobri numa fase ébria, sem rumo, encantada, só sorrisos.
As janelas se derretiam quando eu passava, diante de tanta força e raiva no pisar.
As folhas secavam, a música virava um descompasso quando eu dançava nela.
O brilho brilhava mais, eu podia tocar meu campo de força azul lisérgico.
A vida vinha toda pulsando, os desencontros tinham uma deliciosa razão de ser.
Os encontros aconteciam na vida boêmia visitada.
Me deliciava a importância do ritmo daquele ato que me empurrava alto.
Agora eu me lanço. Eu mereço.

sábado, 25 de outubro de 2008

O Haver

Vinícius de Moraes

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante
E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória

Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.

domingo, 19 de outubro de 2008

Foi-se

Por Viveca Santana

Eu te amei.
Amei mais do que podia.
Mais do que os meus ossos e meu corpo todo poderiam agüentar, mais do que os soluços de choro, mais que o disparar do meu coração no peito e mais que as minhas mãos trêmulas em situações de encontros.
Amei os desencontros. Os dilemas na hora de me vestir para você.
Amei mais que os meus olhos cheios de lágrimas (diárias e sólidas) poderiam derramar nas noites mal dormidas e nos finais de semana de crise.
Amei seu sorriso que não era pra mim, teus olhares contrariados, sua falta de vontade em me ver, amei os beijos que você não me deu, a história que nunca tivemos.
Amei ficar doente e criar a ilusão que você ligava para as minhas dores.
Amei sair pelas ruas triste, ouvir teu nome nos lábios de alguém, espalhados por cartazes na rua que só eu enxergava - as crianças chamadas pelos pais no parque, tinham o teu nome sempre.
Amei te ver, mesmo que de longe, ouvir sua voz, mesmo que não fosse para mim.
Amei ler num livro uma frase bonita e guardar ela pra mim, lembrando de você em cada linha, cada ponto, cada vírgula.
Era como se tudo estivesse envenenado de nós dois. Ou das minhas histórias criadas.
O ar tinha teu cheiro onde eu passava. A voz tua era ouvida no ônibus, as lembranças surgiam em músicas que para mim, eram nossas: viravam videotapes rápidos na minha cabeça cheia de incerteza e melancolia diária.
...
Num desses dias de sol, meu amor acabou. Assim, fulminante como um piscar de olhos.
Não te vi mais na minha rotina, seu rosto não tinha mais os traços fortes de antes.
Os dias ébrios, de olhos vermelhos se perderam numa passagem de horas.
O sentido das coisas agora era meu, me pertenciam as perdas, minhas cicatrizes, meus encontros e incoerências.
Agora eu podia dar rumo a um caminho que meus pés sentiam ao tocar sozinhos, sem a necessidade da tua companhia etérea.
Sem esperar o chão desabar e me sugar.


** Texto escrito para duas amigas queridas. Simplesmente porque o amor acaba e a gente segue em frente, em busca de novos amores.

domingo, 12 de outubro de 2008

"(...) e aquilo a que chamávamos nosso amor era talvez eu estar de pé diante de você, com uma flor amarela na mão, você com duas velas verdes, e o tempo soprando contra nossos rostos uma lenta chuva de renúncias e despedidas e tíquetes de metrô."

Júlio Cortázar.

Vida Doce

Marcelo Camelo

Toda beira é final de dois
eu deixo tudo sempre pra fazer mais tarde
e assim eu caminho no tempo que bem entender
afinal faz parte de mim ser assim.
mais um pouco e vai dar sinal
brinco de esconder
caminho de fé
não vou mais só no que a vida me traz
vida que é doce levar o caminho é de fé
diga que eu não vou
onde você for vida me leva
e todo sentimento me carrega
quem no balanço do mar caminha num baque só
quem no balanço do mar caminha num baque só
vida que é doce levar avisa de lá que eu já sei
todo balanço que dá neste navegar naveguei.

domingo, 5 de outubro de 2008

Poderes

"Os que desejam agradar a um príncipe costumam, na maioria das vezes, dar-lhe presentes que lhes são caros, ou com os quais se deleitam. Desse modo, recebem eles cavalos, armas, tecidos de ouro, pedras preciosas e demais ornamentos, todos à altura de sua grandeza. Quanto a mim, malgrado meu desejo de oferecer a Vossa Magnificência uma prova de meu dever, não encontrei, em meu cabedal, coisa alguma que considere suficientemente cara ou que estime tanto quanto o conhecimento dos atos dos grandes homens, o qual apreendi na extensa experiência da realidade atual e na lição ensinada pela antiga.
..
Origina-se aí a questão aqui discutida: se é preferível ser amado ou ser temido. Responder-se-á que se preferiria uma e outra coisa; porém, como é difícil unir, a um só tempo, as qualidades que promovem aqueles resultados, é muito mais seguro ser temido do que amado, quando se veja obrigado a falhar numa das duas. Os homens costumam ser ingratos, volúveis, dissimulados, covardes e ambiciosos de dinheiro; enquanto lhes proporcionas benefícios, todos estão contigo, oferecem-te sangue, bens, vida, filhos, como se disse antes, desde que a necessidade dessas coisas esteja bem distante. Todavia, quando ela se aproxima, voltam-se para outra parte. Quanto ao príncipe, caso se tenha fiado integralmente em palavras e não haja tomado outras precauções, está arruinado. Porque, quando se fazem amizades por interesse, não por grandeza ou nobreza de caráter, são compradas, e não se podem contar com elas nos momentos de maior precisão."


Sim, eu fui votar no dia 5 de outubro. E não concordo em gênero, número e grau em exercer a minha cidadania de maneira obrigatória, coerciva, impositiva.
Acredito ainda no voto, no poder da escolha, no desejo de mudar as coisas de uma maneira simples e honesta, ouvindo a opinião do povo, que ainda é maioria.
Mas, como acreditar num povo que vive do pão e do circo, que não tem cultura, que tem a educação restringida, que vai para as ruas fazer boca de urna sem conhecer absolutamente nada de política e das consequências de um voto de conluio?
Hoje votamos por interesses próprios, não escolhemos um representante pelo que ele poderá fazer pela população, pelo seu caráter, pelas suas convicções de mudanças sociais.
Em vias de momento de eleições, todos deveriam ler o Príncipe de Maquiavel.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Passarinho

A liberdade anda me segurando tanto pela mão, que teimo em seguir pelos caminhos mais cheios de pedras, os pés andam calejados de tanto andar descalços, as mãos arranhadas de tocar nos espaços sem medo, os olhos cheios de lágrimas de olhar pro fundo do precipício. Será que ela vai soltar minha mão um dia ?

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Reticente

"Será que o sonho que a gente deixou ainda quentinho suado no lençol verde-água nos aceitará de volta ou teremos que ficar quarando aqui no sereno de la calle até o sistema de saneamento eliminar todas as sarjetas das nossas napas farejadoras de fracassos? "
Xico Sá

domingo, 14 de setembro de 2008

O amor acaba

Por Paulo Mendes Campos

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

sábado, 6 de setembro de 2008

Epifania-Saudade-Desapego

Por Viveca Santana

Ele queria que segurassem a mão dele verdadeiramente, um dia. Tinha sido enganado e mantido pelas mazelas do mundo e a vida foi muito dura com ele. Havia um quê de olhos tristes embaixo daqueles óculos pesados, de quem tem muita coisa para ver e dizer, de quem não olha para os lados, de quem só quer ser visto, lembrado, percebido.
Com medo daquele mundo todo, preto e branco para ele, abaixava os olhos, escondia de quem quisesse olhar de perto e ver quanta honestidade tinha na sua pupila colorida.
Era o mais doce e bondoso de todos. Ninguém via naquelas mãos qualquer possibilidade de fazer mal, mas ele afirmava sempre que seria capaz, que tinha uma maldade inata sim, latente dentro dele. Mas ninguém via.
Ele queria que parecesse isso para parecer mais forte.
A tal falta de apego em alguns, camuflada em tanto carinho e sensibilidade era para não sofrer, com tanta falta de altruísmo daquele mundo que nem era dele. Mas com tudo isso, sofria duplamente, confiava demais em quem não valia sua bondade.
Uma convívere expunha sua maldade, dizia que o amava, mas o amor não era isso.
Ela representou esse amor como uma coisa arrasadora, um fio de navalha que cortava o coração dele a cada dia, aumentando sua mágoa do mundo.
E o menino ía passando despercebido com todo aquele brilho contido.
Nas noites ficava mais triste, sozinho, conversava com si mesmo - punha a mão segurando a cabeça que pesava, pensando nas coisas duras da vida. Em coisas sem sentido.
Era uma busca contínua por onde ele estava. Estava ali ? Não sabia.
Há pouco tempo perdeu muito da confiança nas pessoas, sua rotina ficara sem os dias de loucura que estava acostumado a buscar.
Passou um tempo sentindo falta deles, perdido, mesmo que estes ímpetos não valessem tanto a pena e tivessem sido a causa de algumas da suas cicatrizes mais visíveis, as que não saravam, as que dóiam quando ele lembrava.

...

Um tempo longo passou-se. Passaram-se as experiências tristes, ele decidiu que sim.
Nos dias de hoje, no presente, sorria da maneira mais simples. Sorrir não machucava mais. Sua vida voltou a ser como antes, como muito tempo antes. Era gostoso ver esse tempo passar. Buscava nas coisas que tinha deixado para trás e eram boas, um recomeço - voltou a ser o menino de óculos pesados e pupila colorida.
E todos enxergavam ele diferente.

domingo, 17 de agosto de 2008

Desenredo. Pra Caymmi.

Por toda terra que passo me espanta tudo que vejo
A morte tece seu fio de vida feita ao avesso
O olhar que prende anda solto
O olhar que solta anda preso
Mas quando eu chego eu me enredo
Nas tranças do teu desejo
O mundo todo marcado à ferro, fogo e desprezo
A vida é o fio do tempo, a morte o fim do novelo
O olhar que assusta anda morto
O olhar que avisa anda aceso
Mas quando eu chego eu me perco
Nas tramas do teu segredo
Ê Minas, ê Minas, é hora de partir, eu vou
Vou-me embora pra bem longe
A cera da vela queimando, o homem fazendo seu preço
A morte que a vida anda armando, a vida que a morte anda tendo
O olhar mais fraco anda afoito
O olhar mais forte, indefeso
Mas quando eu chego eu me enrosco
Nas cordas do seu cabelo
Ê Minas, ê Minas, é hora de partir, eu vou
Vou-me embora pra bem longe...

Composição: Dori Caymmi / Paulo César Pinheiro

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Eleições, personagens e ilusões

O Homem Da Gravata Florida
Jorge Ben Jor

Lá vem o homem da gravata florida
Meu deus do céu... que gravata mais linda
Que gravata sensacional
Olha os detalhes da gravata...
Que combinação de côres
Que perfeição tropical
Olha que rosa lindo
Azul turquesa se desfolhando
Sob os singelos cravos
E as margaridas, margaridas
De amores com jasmim
Isso não é só uma gravata
Essa gravata é o relatório
De harmonia de coisas belas
É um jardim suspenso
Dependurado no pescoço
De um homem simpático e feliz
Feliz, feliz porque... com aquela gravata
Qualquer homem feio, qualquer homem feio
Vira príncipe, simpático, simpático, simpático
Porque... com aquela gravata
Ele é esperado e bem chegado
É adorado em qualquer lugar
Por onde ele passa nascem flores e amores
Com uma gravata florida singela
Como essa, linda de viver
Até eu, até eu, até eu, até eu, até eu,...

sábado, 9 de agosto de 2008

Mesmo

Por Viveca Santana

Ela viu um dos seus filmes preferidos.
A vida passava na frente dela com uma velocidade dolorosa. Dóia a música cantada no fim.
Neste mesmo dia, tinham sentado um ao lado do outro. Ele como sempre, não percebia a sua falta de leveza e tranqüilidade. Ela tirava os anéis dos dedos, nervosa por estar ali compartilhando aquele ar.
Era bonito de ver o jeito que ele segurava o cigarro entre os dedos e punha entre os lábios. Os lábios que ela desejava tanto nos sonhos, nas cartas, nestas linhas escritas.
Houve um momento em que ele olhou para ela – o mesmo olhar sem vida de sempre. Perguntou se ela concordava com algo que os outros da mesa conversavam.
Mas do que falavam? O ar continuava sim carregado, as pontas dos dedos cheios de sensações inúteis, o coração apressado em batidas fortes.
Ela não reparava em nada, prendia-se em si mesma, o tempo sem pressa, a atenção na respiração dele, que só ela conseguia ouvir.
Aquele cigarro poderia durar dias, aquelas cinzas podiam amontoar-se no chão. Ela adoraria, mesmo que fossem só as cinzas que permanecessem.


** Para ler ouvindo "Socorro", Arnaldo Antunes.

sábado, 2 de agosto de 2008

Plágio

"As nossas cidades ruins formam o nosso caráter, se adequam à nossa inadequação e se tornam a nossa peculiaridade. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Não sou daqui, mas é como se fosse.
Agora que surge a possibilidade real e incerta de finalmente sair, nem é ainda uma fotografia na parede, e já dói.
A minha cidade tem um nome feio, mais feio que o meu, não tem o charme de uma cidade pequena, nem é uma cidade grande, uma cidade no meio do caminho, como eu."

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Perfeição

"Por tanto tempo me fiz altura e fortaleza, coragem e soberba, que desaprendi pés descalços. Para que Você me tivesses sem peso sobre teu dorso, me fiz caminhar a teu lado, emulei força, desdém, impermeabilidade.
Me fiz crer que não te queria para sempre embrenhado em meus sonhos, para que pudesses fingir minha prescindibilidade na tua vida. Não temerias por teus pilares, nem eu pelo meu futuro.
Eu menti que não te amava tanto, que tua falta não dilaceraria meus olhos. Vesti casca, carapaça, para não te assustar com minhas entranhas, minha carne viva. Fingiste estar a salvo.
Me disfarcei de mármore, te fantasiaste de cego.
E, com o tempo, meu corpo se fez pedra, teus olhos se fizeram desertos..."

Por Lígia Mello.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

C´est la vie

Por Viveca Santana

Meus dias na praia do Buracão acabaram.Talvez porque no inverno não tenha a graça do sol, da areia quentinha nos pés, porque meu alter ego foi-se.
Fico na minha palidez sem alma.
Acabaram as risadas sinceras de virar o rosto pra trás, numa alegria sem tamanho. Do jeito de se chamar de louca, de sair pelas ruas do Rio Vermelho fazendo amizade, pulando pelos bares com uma despretensão de continuar a vida, para ver uma segunda chegar.
Olhar no olho e sorrir por nada, só sorrir.
A espera do reencontro cansa, mas é uma espera cheia de esperança e saudade.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Trecho

"Rezei para você me querer, rezei para você não me querer, agora assobio na rua, ciente de que o coração de um vira-lata sempre ressuscita na primeira curva, logo assim que cruza a solidão enferrujada da linha do trem."

Xico Sá
http://carapuceiro.zip.net/

sábado, 14 de junho de 2008

Olívia.

Por Viveca Santana

Olívia tinha idéias que ninguém tinha.
Agora perto dos 4o anos, parecia uma menina com mais idéias ainda, uma versão da Emília do Lobato com sotaque nordestino. Vivia numa cidade bem grande. Grande somente perto do tamanho dela.
Os prédios altos da cidade de São Paulo, às vezes engoliam suas reinações, os dias cinzas misturados, confundiam a sua cabecinha, agora de cabelos lisos e negros, pintados como deviam ser antes.
Nas conversas de amigos, Olívia era menção constante : tornou-se figura folclórica no Riacho Fundo, no Rio Vermelho, nas mesas de bar, nas praias do Norte.
Os convescotes não eram mais os mesmos, diante da falta dos seus trejeitos teatrais, do jeito que segurava o cigarro entre os dedos, dos seus levantes nas pontas dos pés, em momentos de raiva. Crescia e se tornava um gigante, como os das histórias dos livros empoeirados de sua estante.
Olívia agora vivia só. Numa casinha como ela queria, perto da sua poesia, sua.
O tom que via da sua janela agora era gris, mas era seu.
[...]

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Ítaca

Quando você partir, em direção a Ítaca,
que sua jornada seja longa e repleta de aventuras, plena de conhecimento.
Não tema Laestrigones e Cíclopes nem o furioso Poseidon;
você não irá encontrá-los durante o caminho, se você não carregá-los em sua alma, se sua alma não os colocar diante de seus passos.
Espero que sua estrada seja longa.
Que sejam muitas as manhãs de verão, e que o prazer de ver os primeiros portos traga uma alegria nunca vista.
Procura visitar os empórios da Fenícia e recolha o que há de melhor.
Vá as cidades do Egito, e aprenda com um povo que tem tanto a ensinar.
Não perca Ítaca de vista, pois chegar lá é o seu destino.
Mas não apresse os seus passos: é melhor que a jornada demore muitos anos e seu barco só ancore na ilha quando você já estiver enriquecido com o que conheceu no caminho.
Não espere que Ítaca lhe dê mais riquezas.
Ítaca já lhe deu uma bela viagem; sem Ítaca, você jamais teria partido.
Ela já lhe deu tudo, e nada mais pode lhe dar.
Se, no final, você achar que Ítaca é pobre, não pense que ela lhe enganou.
Porque você tornou-se um sábio, e viveu uma vida intensa, e este é o significado de Ítaca.

KONSTANTINO KAVAFIS - poeta grego (1863-1933) e presenteado por uma das minhas amigas mais queridas.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Júlia

Por Viveca Santana

Júlia era uma criança com olhos grandes e poucas palavras. Não via muita importância em dizer muito, era muito cansativo falar, mesmo que fosse pouco. Também não era bonita.
Assustava até. Tinha traços levados para a idade e hábitos de velhice.
Os pais ficavam sentidos por não poder apresentá-la tanto, exibir os seus dotes infantis, afinal as crianças existiam para isso : para serem exibidas aos passantes. Exaltaram-se por muito tempo com aquilo. Tinham uma pequena que não se misturava às outras, que sentia-se feliz em estar só, em não fazer parte do mundo.
Na verdade, se preocupavam com o que todos falavam dela: por que havia nascido daquele jeito, reclusa, com aqueles olhos grandes que pareciam engolir o mundo, sem nada pra dizer, sem fazer amigos, quieta pelos cantos.
Tentaram terapias, novenas longas, viam um possível autismo, mudaram de escola algumas muitas vezes, choraram muitas noites, a mãe preocupada com o falatório dos vizinhos e parentes - a sua rotina afetada e impaciente com os hábitos de Júlia.
Falavam dos seus olhos inquisitores, de crítica. A solução era desviar os olhos, destacar a sua falta de importância. Os pais decidiram por deixá-la em casa, nos jantares e reuniões familiares. Seria mais conveniente e evitariam tantas piadas e explicações.
Ela com as bonecas, os livros e a tv, não levantariam tantas discussões - os encontros com os tios não se tornariam situações de vergonha interminável, de comparações com os sobrinhos normais. Mas Júlia não seria desse jeito se quisesse.
Tornou-se mais um móvel naquela sala grande porque nunca havia sido o que queriam, nunca recebeu o carinho dos outros por ser diferente. A sua existência inconstante seria algo triste diante da normalidade dos outros.
Certamente Júlia seria mais uma, que não sobreviveria sozinha com aqueles olhos grandes que incomodavam aos normais e aos seus.
Era mais uma criança que tinha que ser o que os pais almejavam.
E não era.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Antropofagia

Por Viveca Santana

Da minha parte nunca haverá raiva de nada. Nem da dúvida, nem da espera, nem do excesso de vontade.
É como se as coisas tivessem que ser. Tinha que suportar muita coisa, ainda. Esperar.
Meu mundo não é esse, meus dias estão contados nessa página amarela, sem graça. Na letargia viciada desse lugar.
Não que a vida reserve coisas espetaculares e grandiosas. Ou uma bicicleta verde para eu sair por aí pedalando com uma cestinha cafona cheia de flores. Ou a sorte de passar o dia com os pés na água, olhando pro nada, ouvindo alguma música simples. New Order, talvez. Ou Bob Dylan e sua gaita triste. Ou talvez reserve tudo isso, bem longe. Ou não. Ou sim.


- Que pessimismo você tem - alguém me disse dia desses.
- Você quer muito e tem tanta coisa aqui, olha como eu sou feliz - prosseguiu de maneira tão otimista, que enjoava. Era um Dalai Lama de livraria, provavelmente. Alguém com a aquele vidinha normal - a graça era tudo estar no seu lugar, não sair do lugar, não passar dos limites, no lugar de sempre.
E eu continuava ouvindo aquilo tudo de muitos outros altruístas, aceitando.
Contando os dias no calendário - ele todo riscado de vermelho forte, quase me mandando embora:
- Vai, querida. Anda !

domingo, 30 de março de 2008

Cacos

Por Viveca Santana

Era como um vidrinho desses que tinha reconhecido na casa da avó.
Daqueles que ficam na estante mais alta, para os pequenos não se aventurarem a pegar.
Todos que chegavam naquela casa elogiavam o vidrinho, como era bonito de olhar ele, lá em cima, tão longe das mãos, difícil de tocar.
Ninguém podia dizer uma palavra inconveniente, um desatino, um defeito, um erro dele – o tal vidrinho ía rachando, rachando.
Já estava bem trincado nos tantos anos de existência, cansado de não ter a atenção que merecia, lá em cima na estante. Só sendo elogiado de longe.
Mas era um cristal tão colorido e cheio de prismas que ninguém nunca percebia o quanto estava frágil, perto de partir pra sempre. As pessoas também não se importavam com isso, se quebrasse, era só trocar por outro mais bonito, talvez um daqueles que avistaram numa loja nova, com promessas de quebrar dificilmente e também mais novo aos olhos.
De certo, ninguém pararia no tempo para colar os caquinhos do vidro.
Não ficaria bonito como antes.
Havia muita coisa para se fazer, muitas responsabilidades mais importantes.
Tornava-se mais fácil juntar os caquinhos coloridos pra longe e jogar fora. Viver mais tranquilamente sem a possibilidade de cortar os pés ou de tê-los incomodando os olhos.
E a vida seguia adiante, com um novo cristal lá na estante, novo e mais bonito, talvez.

sexta-feira, 21 de março de 2008

As ondas.

"Ele me esquecerá. Deixará sem resposta minhas cartas, que ficarão em meio a suas espingardas, seus cães. Eu lhe mandarei poemas, talvez ele responda com um cartão-postal. Mas é por isso que o amo. Proporei um encontro - debaixo de um relógio, ou numa encruzilhada; esperarei, e ele não virá. É por isso que o amo. Ele se afastará da minha vida, esquecido, quase inteiramente ignorante do que foi para mim. E, por incrível que pareça, entrarei em outras vidas; talvez não seja mais que uma escapada, um simples prelúdio."
Virgínia Woolf.
* último post copiado e encontrado em tantas coisas que tenho lido aos montes. Os próximos textos espero que sejam meus, exilados da preguiça.

sábado, 15 de março de 2008

Trecho

"Sabe?
Eu procuro agora, de preferência em certas horas, os lugares em que um dia fui feliz, feliz à minha maneira, e ali tento com minha imaginação imprimir ao presente a forma do passado irrevogável, ou também representar mentalmente o passado; e ali me ponho muitas vezes a dar voltas sem finalidade, como uma sombra, pelas ruazinhas de Petersburgo.
Neste instante recordo, que faz um ano que andei pela mesma calçada, e nesta mesma hora, tão só e triste como hoje. E recordo que meus pensamentos de então eram igualmente tristes como os de agora, e apesar de que também o passado não seja melhor, parece-nos que o foi, como se tivéssemos vivido mais placidamente, e não tivéssemos tido sobre a alma essa vaga melancolia que agora nos persegue...que não sentimos esses remorsos de consciência, que nos atormentam de modo tão doloroso e incansável, e não nos deixam gozar de um instante de repouso nem de dia, nem de noite.
E a gente abana a cabeça e murmurra "Como passam rápidos os anos!" e a gente volta a perguntar a si mesmo: "Que fizestes dos teus anos? Onde enterrastes o teu tempo?
Vivestes ao menos? Ou não?" "Olha - dizemos para nós mesmos - olha que frio faz no mundo. Passarão ainda alguns anos, e então virá a espantosa solidão, virá com suas muletas a velhice trêmula, trazendo consigo a tristeza e a dor. Perderá suas cores o teu fantástico mundo, murcharão e morrerão seus sonhos, e como a folha amarela da árvore, igualmente se desprenderão de ti..."
Noites Brancas, Fiódor Dostoiévski

quinta-feira, 6 de março de 2008

Santa Ceia

Aconteceu na primeira reunião ministerial de 2008. Depois de infinitos “nunca na história do mundo”, LULA, finalmente, equiparou-se a CRISTO. Repercussão, como não poderia deixar de ser, no Brasil e no mundo. LULA tem resistido a tudo. Mas, muitas vezes, um pequeno detalhe, que quando acontece passa batido ou causa alguma repercussão, meses depois converte-se numa bomba destruidora e impossível de ser desarmada. Que o diga Fernando Henrique que anos atrás perdeu uma eleição já ganha para JÂNIO por uma frase perdida, ou por sentar-se, antes da hora, na cadeira certa, ou, se preferirem, sentar na cadeira certa na hora errada. Será que desta vez LULA tropeçou de vez? O tempo dirá.
Ao abrir a primeira reunião ministerial, e dentre outras coisas, disse, “eu fico imaginando que muitas vezes nesta mesa aqui parece a Santa Ceia, todo mundo reunido...”. E como não poderia deixar de ser, todos concluíram que naquele momento se equiparava a Cristo, e a pergunta seguinte é quem, dentre não os 12 apóstolos mais os 37 ministros, seria JUDAS? RICARDO NOBLAT em seu Blog comentou, se Judas chamasse Jesus para “compor a chapa do partido, seria para vice”. Já LUIZ ERNESTO BARRETO, em seu blog “A IMPRENSA DE CUYABÁ”, foi mais longe, “Os hospícios estão cheios de gente assim. Notamos que ele (ou seria Ele) está queimando etapas, pois não passou pela incorporação de Napoleão Bonaparte. Dentro do previsível, não se pode estranhar se em ocasião próxima, superada essa fase, resolva o nosso presidente revelar que na verdade é o Pai, criador do céu e da terra, continuando o previsto no manual progressivo freudiano...”.
Depois, na mesma reunião, reclamou que os ministros não falavam entre si, como se ele não tivesse nada a ver com esse absurdo, e muito mais.
De qualquer maneira, e conta a história, todas as vezes que alguém resolve brincar com a Santa Ceia, alguma coisa de ruim acaba acontecendo. No início dos anos 90, o principal dirigente de uma próspera agência de publicidade do Brasil, decidiu fazer um anúncio da agência cujo título era exatamente esse, A SANTA CEIA. E imediatamente, ninguém teve a menor dúvida de quem era, naquela agência, o Cristo. Seus 3 principais apóstolos, não querendo incorporar a figura de Judas, decidiram pegar o chapéu e seguir em frente. Hoje, comandam duas das mais importantes agências em atuação no país. O anúncio que acabou não sendo publicado, seguramente mudou a história de nossa publicidade. Será que mudará a história do país?

sábado, 1 de março de 2008

Tourbillon de la vie

Por Viveca Santana

Aquela casa grande e colorida agora estava vazia.
Olhava para todos os lados e não via as paredes que antes guardavam suas lembranças todas.
Levaram tão rapidamente, o que ela tinha passado anos para pôr naquelas caixas.
Em um dia levantou e não encontrou mais nada.
Perder coisas era algo mais cansativo do que construir - seu corpo doía tremendamente por não ver mais nada do que havia demorado tanto para ter e sentir carinho.
Será que todas as lembranças da caixa foram jogadas fora ?

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Colóquios de uma noite sem escritos.

"Pois logo a mim, tão cheia de garras e sonhos, coubera arrancar de seu coração a flecha farpada. De chofre explicava-se para que eu nascera com mão dura, e para que eu nascera sem nojo da dor.
Para que te servem essas unhas longas?
Para te arranhar de morte e para arrancar os teus espinhos mortais, responde o lobo do homem. Para que te serve essa cruel boca de fome?
Para te morder e para soprar a fim de que eu não te doa demais, meu amor, já que tenho que te doer, eu sou o lobo inevitável pois a vida me foi dada.
Para que te servem essas mãos que ardem e prendem?
Para ficarmos de mãos dadas, pois preciso tanto, tanto, tanto - uivaram os lobos e olharam intimidados as próprias garras antes de se aconchegarem um no outro para amar e dormir. "

(Clarice Lispector)

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Colores

Por Viveca Santana
... e os espaços vazios vão se encher de luz vaga-lume novamente.
Vão vir azuis se eu quiser e de todas as cores. Nem vai precisar eu forçar todas elas, apertando os olhos. Elas vão vir.
Dias antes olhei triste, três vezes pro mesmo ponto, adormeci e despertei sem vê-las : eu nunca as tinha desejado mesmo.
O preto e o branco não exigiam da minha sensibilidade, da exposição da minha fraqueza e teimosia.
Acordei na manhã seguinte com os olhos quentes de luz, chegaram rápido, me empurraram segura num abismo arco-íris só meu e me cegaram com uma força tênue.
Hoje num vício delicioso, da distorção da delícia de seus matizes, não consigo querer mais nada além delas - me acordando todos os dias.
Cheias de cor vaga-lume.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Instruções para chorar

Julio Cortázar
Deixando de lado os motivos, atenhamo-nos à maneira correta de chorar, entendendo por isso um choro que não penetre no escândalo, que não insulte o sorriso com sua semelhança desajeitada e paralela. O choro médio ou comum consiste numa contração geral do rosto e um som espasmódico acompanhado de lágrimas e muco, este no fim, pois o choro acaba no momento em que a gente se assoa energicamente. Para chorar, dirija a imaginação a você mesmo, e se isto lhe for impossível por ter adquirido o hábito de acreditar no mundo exterior, pense num pato coberto de formigas ou nesses golfos do estreito de Magalhães nos quais não entra ninguém, nunca. Quando o choro chegar, você cobrirá o rosto com delicadeza, usando ambas as mãos com a palma para dentro. As crianças chorarão esfregando a manga do casaco na cara, e de preferência num canto do quarto.
Duração média do choro, três minutos.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Vírgulas

Por Viveca Santana
Havia uma tentativa de mudar o que já era faz tempo.Tinha uma falta de pudor inconsciente, uma bravura verdadeira, um medo de mostrar o que era pros outros. Muito fácil desculpar-se na sua loucura, deixar que a vissem com uma força tremenda, uma falta de sentimentos - seu choro era sempre amparado pela sua falta de vontade de sofrer. O grito estava lá, preso há anos, doido para sair dali e se saísse, poderia se acostumar, sensibilizar, virar mais uma delicada incansável pro mundo fazer sofrer.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Bipolaridade Rulez

"Seria tão fácil aproveitar dela. Qualquer um poderia. Qualquer um a levaria por uma palha, um raciocínio, um doce. Por isso achei melhor deixá-la no quarto trancada, e não apenas eu: nós todos a estamos vigiando em turnos alternados. Ela poderia sair andando como um cachorro peregrino no seu último dia. Mas também não é isso que procura. Prefere o tule fino dos lençóis. E quer ser lembrada. Eu lembro. Eu vou me lembrar."


"Tiraram algumas nesgas do alto das pernas dela, um lanho ou um tufo de pêlos. Magra, ela ainda está quente, como um corpo vivo. Seu peso, é mais um peso do que alguém, respira, e se os têm abertos (poros e olhos), algumas concavidades, onde havia carne, foram cavadas pela mão de quem - do Senhor das amarguras, ou desencanto, ou pelo seu desejo de encontrar uma planície branca, mesmo que fosse a morte".


"Não sei precisar o que haverá de tão desejável no púrpura das suas olheiras, na baba que escorre pelo seu queixo. Não sei dizer porque não posso tirar meus olhos dela. Sinto a maré da sua tristeza me arrastar. Não sei por que não durmo, por que não vou embora de uma vez. Talvez lhe fizesse bem, afinal estar sozinha e abandonada. Talvez a minha paciência seja um sintoma da sua doença, como seus pesadelos, o choro lento e sem fim, a articulação imperfeita das sílabas quando fala, como se estivese bêbada."
Trechos de "Minha Fantasma", Nuno Ramos.

domingo, 13 de janeiro de 2008

Set list.

Acredita-se que tudo pode acontecer este ano. A lista de shows para 2008 não contará apenas com Ivete Sangalo, Babado Novo e funk carioca. Será?

Bob Dylan - São Paulo (Via Funchal) e Rio de Janeiro (local ainda não definido).

Iron Maiden - São Paulo (no dia 2 de março; ingressos já esgotados), Curitiba (dia 4) e Porto Alegre (dia 5).

Interpol - São Paulo (no dia 11/3, no Via Funchal), no Rio de Janeiro (em 13/3, na Fundição Progresso) e em Belo Horizonte (dia 15/3, no Chevrolet Hall).

Prováveis : Foo Fighters (entre outubro e dezembro), Rage Against the Machine e The Cure (quando?)

domingo, 6 de janeiro de 2008

La Notte.

Michelangelo Antonioni
"Hoje, quando acordei, você ainda dormia. Aos poucos, acordando, senti sua respiração leve.
E através dos cabelos que escondiam seu rosto, vi seus olhos fechados e senti uma comoção subindo à garganta. Tive vontade de gritar e acordá-la pois o seu cansaço era profundo e mortal. Na penumbra, a pele dos seus braços e pescoço estava viva e eu a sentia morna e seca.
Queria os lábios nela mas o pensamento de perturbar seu sono e de ainda tê-la em meus braços, me impedia. Preferia tê-la assim, como algo que ninguém tiraria de mim, pois só eu a possuía. Uma imagem sua para sempre. Além do seu rosto, via algo mais puro e mais profundo onde eu me refletia. Eu via você numa dimensão que englobava todo o tempo da minha vida.
Todos os anos futuros e os que vivi antes de conhecê-la, mas já pronto para encontrá-la. Este era o pequeno milagre de um despertar. Sentir pela primeira vez que você me pertencia, não só naquele momento, e que a noite era eterna ao seu lado.
No calor de seu sangue, de seus pensamentos, da sua vontade, que se confundia com a minha. Por um momento, entendi o quanto a amava, Lídia, e foi uma sensação tão intensa que meus olhos se encheram de lágrimas.
Eu pensava que isso jamais deveria terminar. Que toda nossa vida deveria ser como esse despertar. Senti-la não minha... mas como uma parte de mim. Uma coisa que respira comigo e que nada pode destruir, a não a ser a indiferença de um hábito que considero a única ameaça. Então, você acordou, e sorrindo, ainda adormecida, me beijou e eu senti que não havia nada a temer. Que seríamos sempre como naquele momento, unidos por algo que é mais forte que o tempo e o hábito."
Quando vi este filme, por indicação de uma amiga que tive o prazer de conhecer, me apaixonei perdidamente pela maneira sincera que Antonioni enxerga os detalhes, que muitos não conseguem ver. Procurei este último trecho na internet, tentei rever o filme algumas vezes e por esta amiga, fui presenteada com o diálogo final do filme - uma das cenas mais lindas que já vi.
Para quem não conhece, tente assistir a trilogia (L'avventura, La notte e L'eclisse) , de coração aberto.
Foi uma das melhores descobertas que já tive e hoje é um dos meus cineastas mais queridos.