domingo, 24 de maio de 2009

A caverna e o mito

Por Moca e Viveca Santana

Imaginava que o quarto era uma caverna e ele parte do mito de Platão.
Não um teorema, algo que houvesse explicação lógica, via-se agora personagem da Alegoria da Caverna, em meio a embriaguez.
Tinha alguns balões no teto, entre algumas estalactites, daqueles que se compra em banquinhas com palhaços vendendo em volta de parques itinerantes.
Sérgio Sampaio era o que escorregava do rádio àquela hora, "Conveniente", ele diria. Os olhos doíam em meio à escuridão, de vez em quando um flash descontrolado de luz os fazia doer e ele levava as mãos ao rosto, esfregava com força, se via tentado a um sorriso incoerente, nele vinha de graça, uma interrogação rápida.
Bom, nada mais lógico.
Em volta, as mesmas garrafas de vodka barata, os mesmos maços de cigarro espalhados pelo chão, o gosto cortante de fel nos lábios - ambiente impregnado das ressacas que colocavam pra fora com força, as dores e temores que o perseguiam. A rádio agora tocava qualquer coisa sem importância e as mãos tocavam o chão, sentia-se vivo, mas enterrado numa caverna funda, escura. Sem conseguir se reerguer, entregou-se ao fardo da cama. Tudo agora era uma metáfora da caverna, a mesma que ele havia se fechado com uma pedra grande e imóvel na entrada.
Lutou mais uma vez para abrir os olhos cegos pela falta do sol, atrofiados desde que descobriu os próprios defeitos (por um triz não tornou deles, motivos para escorrer para o fundo e ficar imerso e terminando por ensurdecer para os sons cotidianos).
A culpa era dela. Ela o aprisionou naquele lugar.
Alice virou o rosto e seguiu seu caminho de balões de banquinhas, sem o frio das estalactites, ávida pela luz das futilidades. Levou consigo a chave, o jeito de sair das sombras, a liberdade dele e muitas outras coisas que não lembrava agora, mas que certamente eram culpa dela.
Calado na caverna - escura, silenciosa, segura, mórbida, lá estava ele, sem muitos metros quadrados para sobreviver, o ar adocicado da vodka nauseava, as estalactites lá em cima, afiadas ao seu encontro, ele de costas pra entrada, forçado a olhar pro teto.
O que vinha de fora, ainda era latente desejo, orgia intensa no corpo, lembrança dela que fazia parte de cada osso, de cada músculo, das vértices do quarto; o cheiro forte do perfume de Alice ainda estava em cada transpiração soprada naquela escuridão, fazia parte da tortura imposta por ela.
A caverna escura tinha partes do corpo da mulher fossilizada nas paredes: das coxas, do sexo, dos fios de cabelo, partes dos lábios e do pescoço - pedaço que se pudesse mutilaria e guardaria para ele. Por que não havia pensado nisso?
Ele estava encarcerado para sempre às lembranças - raios quentes que coravam e ardiam passando como chicotes pelo seu corpo magro, enfraquecido das tolices que haviam dito dias antes e arruinado pra sempre o amor que seria pra sempre, se realmente fosse.
O quarto era uma caverna e ele era sim, um homem-sombra do mito de Platão, pensou.
Ele morreria ali (era questão de tempo). O mito que se descrevia podem esquecer, ele não lembrava mais.

* Para ler ouvindo Kashmir, Led Zeppelin

Um comentário:

BelaCavalcanti disse...

Esta muito bom teu texto, Veca. Com uma ressalva que pode parecer clichê: Eu não acredito que NINGUEM tenha "a chave" de ninguem... Vc entra, sai e (re)define a sua identidade quantas vezes vc quiser ;)
Comigo pelo menos foi assim... No mais, o ministerio da saude adverte: Fumar deixa um gosto MUITO ruim na boca ARGHHH :((