domingo, 26 de julho de 2009

Quinto Fragmento da Décima Terceira Voz

Tanto sangue dentro do meu derramado coração, era assim? Talvez fosse, mas não se trata disso. Lamúria insuportável, o corpo, esse que se arrasta com suas carências. Não precisa pressa, calma lá. A porteira está fechada para quem quiser passar, era isso? Já te disse que não responderei. Quero saber, e depois? Passaram-se meses, ele voltou. Foi longo. Doía. Continua doendo. Ainda não acabou. Passa, passará. Às vezes ficávamos deitados na minha cama enquanto eu tentava decifrar o seu destino. Marte, Ossanha gostava das folhas, das pedras. De peixes também. Ele me ensinou que as pedras eram vivas. Desde então eu as mantenho imersas em copos cheios d’água, para que cresçam. São muitas. Agora espero outro. Que como ele, não será mais do que Uma Nova Metáfora do Encontro. Por enquanto espio as pombas nas cumeeiras. Quando não há música, canto. Quando paro de cantar, como maçãs. Os talos estão jogados pelo quarto, entre os lençóis. Apodrecem como meus sentimentos, jogados na via-láctea. Esfrego a lâmpada, mas o gênio se foi. Talvez me bata outra vez contra as grades da janela até me levarem para a mesa de choques.
Caio Fernando Abreu

Para ler ouvindo: http://www.youtube.com/watch?v=08_2eTj3wsA
(uma das preciosidades do New Order, numa versão do Radiohead, muito boa como sempre).

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Ópio

Por Viveca Santana

Sonhou que havia uma orda bem grande de formiguinhas, passando pelo seu corpo.

Ela não se preocupou em momento algum em catá-las dos pés sujos de terra, de pólen e grama ou dos braços, de onde surgiam muitas muitas muitas, bem avermelhadas e com pressa em fugir nas suas poucas curvas.

Voltou a deitar e deixou as formigas continuarem a se espalhar pelo seu vestido vermelho, pelos cabelos encaracolados, pelos lábios e pelas mãos fininhas - o cheiro delas era forte, formavam um sabor latejante na sua boca e por algum motivo ela não tinha medo algum.


Preferiu ficar olhando o sol forte e raiado, acreditando que era tão doce que as formigas se enchiam aos montes e se uniam, no seu corpo cor de açúcar.

http://www.youtube.com/watch?v=K57szVmdVac

terça-feira, 7 de julho de 2009

Nossa música

Por Viveca Santana

A nossa música tocou hoje, depois de meses em que evitei de ouví-la, com medo de chorar ou lembrar de você. Ou com medo de ter medo, de novo.
Algumas farpas continuam aqui e ali, ainda bocejo sem sentir graça no despertar, ainda tenho parte do teu cheiro quando tento ou procuro dormir.
Você ainda se escora lá no meu peito ardendo, em algum lugar que não consigo encontrar e tirar de mim, mesmo que à força (e que arranque parte da pele e desprenda meu sangue, me dilacere de maneira invisível). Talvez esteja em todos os lugares que passam lembranças pelo meu corpo, não sei.

A nossa música, a minha música, a tua música, me fez chorar de novo e eu percebi que fujo dela todas as vezes, porque você não está aqui para falar como ela é bonita de ouvir, ou da quantidade de coisas que ela pode te fazer lembrar ou querer esquecer.
Virou meu fantasma, mas com certa beleza que não sei explicar o que é, com um medo intenso de reaver emoções que eu quis guardar.

Dessa vez consegui ir com ela até o fim, trêmula, derramando lágrimas em cada estrofe, apertando os olhos e pensando em você, na sua voz (que por mais que eu ache que não vou lembrar, eu lembro), em uma quantidade de coisas que eu quis dizer e não tive coragem e agora estão presas em mim, algemadas pra onde eu resolver me atirar, na intenção de abandonar pra sempre.

A coragem que eu achei que existia, transformou-se numa dúvida que você me cobriu, deixou riscada na pele e agora é a única herança que eu tenho de você, mesmo que eu não queira. Mudou tudo na carne dura, ausente e pálida de antes.

Nossa música ficou aqui, comigo pra eu lembrar. Pra eu mudar mesmo que eu acredite ser impossível.


Para ler ouvindo Love Will Tear Us Apart- Joy Division