terça-feira, 17 de abril de 2007

O olho é o ovo do verbo

Por Gero Camilo
Revista Bravo! 03/2007


Essa semana dei-me um castigo: não possibilitei-me a escrita.
Durante todos os dias fui acumulando vontades. Palavras que vinham na mão e eu tinha que escrevê-las, mas não escrevia.
E fiquei me enchendo delas. Muitas palavras. Não fosse engordar de palavras, ainda engordava das mães. Das mães. Das mães das palavras. Senhoras magras com lençóis brancos postos ao sol. Garotas de tranças e sandálias. Sandálias nos pés e dálias nas tranças. Garotos barrigudos com pernas de cipó. Garotos cor de terra e dentes de leite.
Não fosse engordar de palavras, mães, dálias, dente de leite, ainda engordava do chão que pisa a mãe, que nasce a dália, que o telhado da casa obrigou o dente e o pedido que o menino banguela expressou sem palavra. Só com o olho voltado para Deus do céu em cima do telhado ele expressou seu pedido:
O olho é o ovo do verbo. O dente é o pretérito mais-que-perfeito da gema do sujeito. A mão é a pena da asa da terceira pessoa que seremos adiante. A língua é a crase do beijo. O pé é a vírgula do escorrego. O umbigo o adjunto da espécie. A mulher é o ponto que sobe. O homem é o ponto que desce. O verbo é olho do ovo. A letra é a digital do osso.
E nós, abstratos desejos de escrever no corpo.
E assim durante toda semana fui engordando dessas coisas. As mãos, perdendo o controle, davam de escrever no vento que roubava os pensamentos e os carregava pras nuvens, e das nuvens pros continentes diferentes do meu, e de lá para mais adiante do tempo que meu pai me deu na aldeia em que eu nasci, e de lá pro topo da montanha ir ver um homem de um outro topo de montanha de outros continentes acenando pra mim num gesto ininteligível de alegria e desespero. Não adiantava querer. Canetas escondidas. Papéis molhados. Afoguei poemas.
Deixei frases inteiras boiarem na pia. Podia até ouvir o eco no ralo das palavras que quando sós não valem nada. Podia vêlas morrer na água.
Arrepiou minha vontade. Endoideci.
...
Gero Camilo é ator, diretor, dramaturgo e escritor

6 comentários:

Anônimo disse...

Viva,
Nunca mais vim aqui né?!
Tempo... As coisas aqui não estão muito fáceis.!!!
Adorei o poema viu?! Faz-me lembrar do sertão, um grande pintor que temos aqui em conquista que é o Jessé, a cada linha que fui lendo, fui imaginando os quadros deles perfeitos, com as cores lindas...
Beijos

Anônimo disse...

O que sempre me surpreende é a capacidade de ser original desses gênios da escrita. São as mesmas palavras banais, só que arrumadas de um jeito, que criam um universo novo.
Saudades

Anônimo disse...

Ah, sim, esqueci de assinar !!
Myriam

Anônimo disse...

Eita, Ratinha... eu achei que eu tinha demorado pra visitar seu blog, mas você também demorou de escrever, hein?! Tô estranhando isso... Mas muito bom esse texto! Não some não viu?

Anônimo disse...

Vives querida,
Muito legal o texto. Sinto falta dessa minha amiga inteligente e sensível, que sabe apreciar as coisas belas da vida.
Estou sumida, mas você mora em meu coração.
Juro que serei mais presente, assim que as coisas se ajeitarem para mim.
Beijos cheios de saudade e amor.
Mãe.

Anônimo disse...

concordo com todos os comentários e mais ainda com o que te chama de ratinha. Gostaria de ver mais coisas escritas por vc. MAs tbm sei que seu senso crítico te recolhe, o que é uma grande BESTEIRA. Vc escreve muito bem.
saudades
bjs