domingo, 31 de maio de 2009

"Vai passar, tu sabes que vai passar.
Talvez não amanhã, mas dentro de uma semana, um mês ou dois, quem sabe? O verão está aí, haverá sol quase todos os dias, e sempre resta essa coisa chamada "impulso vital". Pois esse impulso às vezes cruel, porque não permite que nenhuma dor insista por muito tempo, te empurrará quem sabe para o sol, para o mar, para uma nova estrada qualquer e, de repente, no meio de uma frase ou de um movimento te supreenderás pensando algo como "estou contente outra vez".
Caio Fernando Abreu

domingo, 24 de maio de 2009

A caverna e o mito

Por Moca e Viveca Santana

Imaginava que o quarto era uma caverna e ele parte do mito de Platão.
Não um teorema, algo que houvesse explicação lógica, via-se agora personagem da Alegoria da Caverna, em meio a embriaguez.
Tinha alguns balões no teto, entre algumas estalactites, daqueles que se compra em banquinhas com palhaços vendendo em volta de parques itinerantes.
Sérgio Sampaio era o que escorregava do rádio àquela hora, "Conveniente", ele diria. Os olhos doíam em meio à escuridão, de vez em quando um flash descontrolado de luz os fazia doer e ele levava as mãos ao rosto, esfregava com força, se via tentado a um sorriso incoerente, nele vinha de graça, uma interrogação rápida.
Bom, nada mais lógico.
Em volta, as mesmas garrafas de vodka barata, os mesmos maços de cigarro espalhados pelo chão, o gosto cortante de fel nos lábios - ambiente impregnado das ressacas que colocavam pra fora com força, as dores e temores que o perseguiam. A rádio agora tocava qualquer coisa sem importância e as mãos tocavam o chão, sentia-se vivo, mas enterrado numa caverna funda, escura. Sem conseguir se reerguer, entregou-se ao fardo da cama. Tudo agora era uma metáfora da caverna, a mesma que ele havia se fechado com uma pedra grande e imóvel na entrada.
Lutou mais uma vez para abrir os olhos cegos pela falta do sol, atrofiados desde que descobriu os próprios defeitos (por um triz não tornou deles, motivos para escorrer para o fundo e ficar imerso e terminando por ensurdecer para os sons cotidianos).
A culpa era dela. Ela o aprisionou naquele lugar.
Alice virou o rosto e seguiu seu caminho de balões de banquinhas, sem o frio das estalactites, ávida pela luz das futilidades. Levou consigo a chave, o jeito de sair das sombras, a liberdade dele e muitas outras coisas que não lembrava agora, mas que certamente eram culpa dela.
Calado na caverna - escura, silenciosa, segura, mórbida, lá estava ele, sem muitos metros quadrados para sobreviver, o ar adocicado da vodka nauseava, as estalactites lá em cima, afiadas ao seu encontro, ele de costas pra entrada, forçado a olhar pro teto.
O que vinha de fora, ainda era latente desejo, orgia intensa no corpo, lembrança dela que fazia parte de cada osso, de cada músculo, das vértices do quarto; o cheiro forte do perfume de Alice ainda estava em cada transpiração soprada naquela escuridão, fazia parte da tortura imposta por ela.
A caverna escura tinha partes do corpo da mulher fossilizada nas paredes: das coxas, do sexo, dos fios de cabelo, partes dos lábios e do pescoço - pedaço que se pudesse mutilaria e guardaria para ele. Por que não havia pensado nisso?
Ele estava encarcerado para sempre às lembranças - raios quentes que coravam e ardiam passando como chicotes pelo seu corpo magro, enfraquecido das tolices que haviam dito dias antes e arruinado pra sempre o amor que seria pra sempre, se realmente fosse.
O quarto era uma caverna e ele era sim, um homem-sombra do mito de Platão, pensou.
Ele morreria ali (era questão de tempo). O mito que se descrevia podem esquecer, ele não lembrava mais.

* Para ler ouvindo Kashmir, Led Zeppelin

sexta-feira, 15 de maio de 2009

"Tateio, tateias, tateia. Ou tateamos, eu e tu, enquanto ele se movimenta sem dificuldade entre as coisas? Sei pouco de ti, apenas suspeito da tua existência desde quando descobri que nem eu nem ele éramos os donos de certas palavras. Como se tivesse percebido um espaço em branco entre ele e eu e assim - por exclusão, por intuição, por invenção - te adivinhasse dono desse espaço entre a luz dele e o escuro de mim. Tateias, também? De ti, quase não sei. Mas equilibras o que entre ele e eu é pura sombra.
Estou me afastando, estou indo embora e preciso que me entendas antes que eu vá, crucificado na parte externa do vagão de um trem em alta velocidade. Tento devagar, mais claro: ele não se afasta. Dia após dia, eu noto, torna-se mais simpático, mais eficiente, mais solícito - para utilizar palavras que não sei bem o que significam, mas imagino sempre alguém sorrindo muito, fazendo reverências, curvando constantemente a cabeça, como uma gueixa. Gueixa, ele, a grande puta, com seu silêncio de passinhos miúdos e pés amarrados. Preciso tentar certa ordem no que digo, e dizer de novo, vê se me entendes: ele não se afasta, mas é dentro dele que eu me afasto.
Dentro dele, eu espio o de fora de nós. E não me atrevo.
O que vejo nos outros, com seus grandes poros abertos, são caras demasiado vivas. As caras de fora se debruçam sobre ele e eu tenho medo, eu nunca poderia olhar de frente para todos aqueles olhos boiando na superfície branco-gelatinosa, raiada de veiazinhas vermelhas, e eu sinto nojo. Não dos olhos, mas do interior das caras que transparece nas veiazinhas. Também não são as bocas, mas os gosmosos vermelhuscos de dentro, quando se abrem demasiado. Os inúmeros pontinhos pretos dos narizes, às vezes subindo para a testa, entre as sobrancelhas, o interior rosado dos narizes, as goelas abertas com suas umidades móveis ao fundo, cheias de pequenos espasmos, miúdas convulsões. Quando as grandes caras vivas se debruçam, sinto que transpareço nas veiazinhas dos olhos deles, e tenho medo que apenas um piscar me lance para fora, entre as coisas pontudas.
E quando ele abre sua boca movediça para escarrar palavras, gotas de saliva e mau hálito, tenho medo de ele ser essa palavra, essa gota, esse hálito. O mesmo de quando esfrega as palmas das mãos e solta no ar os feixes de energia, como se fosse uma vibração, não um ser.
Sempre posso parar, olhar além da janela. Mas do interior do trem, nunca é fixa a paisagem.

..
E quase não temos tempo."

Morangos Mofados, Caio Fernando Abreu.