sábado, 25 de outubro de 2008

O Haver

Vinícius de Moraes

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante
E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória

Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.

domingo, 19 de outubro de 2008

Foi-se

Por Viveca Santana

Eu te amei.
Amei mais do que podia.
Mais do que os meus ossos e meu corpo todo poderiam agüentar, mais do que os soluços de choro, mais que o disparar do meu coração no peito e mais que as minhas mãos trêmulas em situações de encontros.
Amei os desencontros. Os dilemas na hora de me vestir para você.
Amei mais que os meus olhos cheios de lágrimas (diárias e sólidas) poderiam derramar nas noites mal dormidas e nos finais de semana de crise.
Amei seu sorriso que não era pra mim, teus olhares contrariados, sua falta de vontade em me ver, amei os beijos que você não me deu, a história que nunca tivemos.
Amei ficar doente e criar a ilusão que você ligava para as minhas dores.
Amei sair pelas ruas triste, ouvir teu nome nos lábios de alguém, espalhados por cartazes na rua que só eu enxergava - as crianças chamadas pelos pais no parque, tinham o teu nome sempre.
Amei te ver, mesmo que de longe, ouvir sua voz, mesmo que não fosse para mim.
Amei ler num livro uma frase bonita e guardar ela pra mim, lembrando de você em cada linha, cada ponto, cada vírgula.
Era como se tudo estivesse envenenado de nós dois. Ou das minhas histórias criadas.
O ar tinha teu cheiro onde eu passava. A voz tua era ouvida no ônibus, as lembranças surgiam em músicas que para mim, eram nossas: viravam videotapes rápidos na minha cabeça cheia de incerteza e melancolia diária.
...
Num desses dias de sol, meu amor acabou. Assim, fulminante como um piscar de olhos.
Não te vi mais na minha rotina, seu rosto não tinha mais os traços fortes de antes.
Os dias ébrios, de olhos vermelhos se perderam numa passagem de horas.
O sentido das coisas agora era meu, me pertenciam as perdas, minhas cicatrizes, meus encontros e incoerências.
Agora eu podia dar rumo a um caminho que meus pés sentiam ao tocar sozinhos, sem a necessidade da tua companhia etérea.
Sem esperar o chão desabar e me sugar.


** Texto escrito para duas amigas queridas. Simplesmente porque o amor acaba e a gente segue em frente, em busca de novos amores.

domingo, 12 de outubro de 2008

"(...) e aquilo a que chamávamos nosso amor era talvez eu estar de pé diante de você, com uma flor amarela na mão, você com duas velas verdes, e o tempo soprando contra nossos rostos uma lenta chuva de renúncias e despedidas e tíquetes de metrô."

Júlio Cortázar.

Vida Doce

Marcelo Camelo

Toda beira é final de dois
eu deixo tudo sempre pra fazer mais tarde
e assim eu caminho no tempo que bem entender
afinal faz parte de mim ser assim.
mais um pouco e vai dar sinal
brinco de esconder
caminho de fé
não vou mais só no que a vida me traz
vida que é doce levar o caminho é de fé
diga que eu não vou
onde você for vida me leva
e todo sentimento me carrega
quem no balanço do mar caminha num baque só
quem no balanço do mar caminha num baque só
vida que é doce levar avisa de lá que eu já sei
todo balanço que dá neste navegar naveguei.

domingo, 5 de outubro de 2008

Poderes

"Os que desejam agradar a um príncipe costumam, na maioria das vezes, dar-lhe presentes que lhes são caros, ou com os quais se deleitam. Desse modo, recebem eles cavalos, armas, tecidos de ouro, pedras preciosas e demais ornamentos, todos à altura de sua grandeza. Quanto a mim, malgrado meu desejo de oferecer a Vossa Magnificência uma prova de meu dever, não encontrei, em meu cabedal, coisa alguma que considere suficientemente cara ou que estime tanto quanto o conhecimento dos atos dos grandes homens, o qual apreendi na extensa experiência da realidade atual e na lição ensinada pela antiga.
..
Origina-se aí a questão aqui discutida: se é preferível ser amado ou ser temido. Responder-se-á que se preferiria uma e outra coisa; porém, como é difícil unir, a um só tempo, as qualidades que promovem aqueles resultados, é muito mais seguro ser temido do que amado, quando se veja obrigado a falhar numa das duas. Os homens costumam ser ingratos, volúveis, dissimulados, covardes e ambiciosos de dinheiro; enquanto lhes proporcionas benefícios, todos estão contigo, oferecem-te sangue, bens, vida, filhos, como se disse antes, desde que a necessidade dessas coisas esteja bem distante. Todavia, quando ela se aproxima, voltam-se para outra parte. Quanto ao príncipe, caso se tenha fiado integralmente em palavras e não haja tomado outras precauções, está arruinado. Porque, quando se fazem amizades por interesse, não por grandeza ou nobreza de caráter, são compradas, e não se podem contar com elas nos momentos de maior precisão."


Sim, eu fui votar no dia 5 de outubro. E não concordo em gênero, número e grau em exercer a minha cidadania de maneira obrigatória, coerciva, impositiva.
Acredito ainda no voto, no poder da escolha, no desejo de mudar as coisas de uma maneira simples e honesta, ouvindo a opinião do povo, que ainda é maioria.
Mas, como acreditar num povo que vive do pão e do circo, que não tem cultura, que tem a educação restringida, que vai para as ruas fazer boca de urna sem conhecer absolutamente nada de política e das consequências de um voto de conluio?
Hoje votamos por interesses próprios, não escolhemos um representante pelo que ele poderá fazer pela população, pelo seu caráter, pelas suas convicções de mudanças sociais.
Em vias de momento de eleições, todos deveriam ler o Príncipe de Maquiavel.