sexta-feira, 25 de abril de 2008

Júlia

Por Viveca Santana

Júlia era uma criança com olhos grandes e poucas palavras. Não via muita importância em dizer muito, era muito cansativo falar, mesmo que fosse pouco. Também não era bonita.
Assustava até. Tinha traços levados para a idade e hábitos de velhice.
Os pais ficavam sentidos por não poder apresentá-la tanto, exibir os seus dotes infantis, afinal as crianças existiam para isso : para serem exibidas aos passantes. Exaltaram-se por muito tempo com aquilo. Tinham uma pequena que não se misturava às outras, que sentia-se feliz em estar só, em não fazer parte do mundo.
Na verdade, se preocupavam com o que todos falavam dela: por que havia nascido daquele jeito, reclusa, com aqueles olhos grandes que pareciam engolir o mundo, sem nada pra dizer, sem fazer amigos, quieta pelos cantos.
Tentaram terapias, novenas longas, viam um possível autismo, mudaram de escola algumas muitas vezes, choraram muitas noites, a mãe preocupada com o falatório dos vizinhos e parentes - a sua rotina afetada e impaciente com os hábitos de Júlia.
Falavam dos seus olhos inquisitores, de crítica. A solução era desviar os olhos, destacar a sua falta de importância. Os pais decidiram por deixá-la em casa, nos jantares e reuniões familiares. Seria mais conveniente e evitariam tantas piadas e explicações.
Ela com as bonecas, os livros e a tv, não levantariam tantas discussões - os encontros com os tios não se tornariam situações de vergonha interminável, de comparações com os sobrinhos normais. Mas Júlia não seria desse jeito se quisesse.
Tornou-se mais um móvel naquela sala grande porque nunca havia sido o que queriam, nunca recebeu o carinho dos outros por ser diferente. A sua existência inconstante seria algo triste diante da normalidade dos outros.
Certamente Júlia seria mais uma, que não sobreviveria sozinha com aqueles olhos grandes que incomodavam aos normais e aos seus.
Era mais uma criança que tinha que ser o que os pais almejavam.
E não era.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Antropofagia

Por Viveca Santana

Da minha parte nunca haverá raiva de nada. Nem da dúvida, nem da espera, nem do excesso de vontade.
É como se as coisas tivessem que ser. Tinha que suportar muita coisa, ainda. Esperar.
Meu mundo não é esse, meus dias estão contados nessa página amarela, sem graça. Na letargia viciada desse lugar.
Não que a vida reserve coisas espetaculares e grandiosas. Ou uma bicicleta verde para eu sair por aí pedalando com uma cestinha cafona cheia de flores. Ou a sorte de passar o dia com os pés na água, olhando pro nada, ouvindo alguma música simples. New Order, talvez. Ou Bob Dylan e sua gaita triste. Ou talvez reserve tudo isso, bem longe. Ou não. Ou sim.


- Que pessimismo você tem - alguém me disse dia desses.
- Você quer muito e tem tanta coisa aqui, olha como eu sou feliz - prosseguiu de maneira tão otimista, que enjoava. Era um Dalai Lama de livraria, provavelmente. Alguém com a aquele vidinha normal - a graça era tudo estar no seu lugar, não sair do lugar, não passar dos limites, no lugar de sempre.
E eu continuava ouvindo aquilo tudo de muitos outros altruístas, aceitando.
Contando os dias no calendário - ele todo riscado de vermelho forte, quase me mandando embora:
- Vai, querida. Anda !